segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Entre a cruz e a espada - conto de nossa leitora Liana Zecca


Entre a Cruz e a Espada

Archibaldo sentiu os olhos arderem e as lágrimas, teimosas e inesperadas, embaçarem sua visão, mas ele sabia que não poderia deixar que nada interferisse em sua decisão. Não podia perder a concentração; estava ali é verdade, mas ninguém lhe havia perguntado se era isso que ele queria. Ninguém, nem mesmo seu tratador, o único em quem por algum tempo confiara e acreditara ser seu amigo, seu único amigo – esse o havia traído.
Ainda conseguia sentir o toque de suas mãos sobre sua cabeça alongando-se até o seu nariz; ainda conseguia ouvir o tom carinhoso com que ele lhe falava “Coma, pequeno Archibaldo, quanto mais saudável for, mais justiça a seu glorioso pai fará.”
Seu glorioso pai, Alonmanzor, o único touro a ser indultado por sua bravura, por sua luta em prol de sua espécie e raça, aquele que um dia lhe confessara:
”Bal, meu filho, estou cansado. Se amanhã eu não voltar, me perdoe, mas acredite em mim: eu o amo e sempre o amarei.”
“Pai, do que é que está falando? Você não pode me deixar.”

Ele o olhara e com uma voz carregada de tristeza e muito trêmula,  totalmente estranha ao pequeno Archibaldo, prosseguiu:
“Se nem mesmo o Senhor conseguiu fazê-los pensar diferente, quem sou eu, filho, para mudar essa concepção de que nós, animais, viemos a este mundo por motivos diversos daqueles que eles julgam correto?”    
“Não diga isso, pai, não desista, por favor. Eles, um dia, ainda irão nos compreender.”
“Eu sei, meu filho, ainda acredito nisso, mas não será através de mim que isso irá mudar. Quem sabe, através de você.”
E ali estava ele, tendo que se decidir se faria a diferença neste mundo ou não.
Respirou fundo e sentiu o ar com aroma de sangue entrar em seus pulmões − sangue de seus companheiros já mortos, que jaziam não muito longe de onde se encontrava; cheiro de seu próprio sangue que escorria pelo corpo. A dor que sentia era descomunal, mas ele era jovem e muito, muito forte e a tinha suportado até aquele momento.
À sua frente, o homem todo enfeitado, como uma lamparina, brilhava e dançava, exibindo-se aos milhares de olhares que o acompanhavam, enquanto em uníssono gritavam palavras incompreensíveis a ele, palavras que por seu som tinham um único significado:
SANGUE E MORTE.
Era isso que queriam; isso os divertiam e, por isso, aclamavam aquele palhaço à sua frente. Um palhaço covarde, que só estava a sua frente porque ele, Archibaldo, havia enfrentado outros antes. Mas agora, enfraquecido, machucado e sangrando muito, ele se encontrava no fim.
Mas ali ninguém percebia isso ou não queriam perceber, eles queriam mais sangue, queriam ver a morte − a sua morte.
Começou a caminhar sem tirar os olhos do palhaço luminoso e dançarino a sua frente, enquanto, ao mesmo tempo, olhava nos olhos dos milhares de palhaços sanguinolentos, com sorrisos disformes, gritos horripilantes, e uma  ansiedade vazia por ganhar algum dinheiro em apostas contra ele, contra a sua vida.
Aquele pensamento o levou a bater os pés na terra, levantando poeira e jogando-a para trás. Ao olhar para baixo, enxergou suas marcas nitidamente cravadas ali; sentiu ódio pela dor de seus irmãos companheiros mortos; indignou-se pelo seu pai, pela sua amada mãe Azuncena, pela sua espécie, pela incompreensão daqueles que ali estavam – tudo isso o conduziria à sua decisão que sabia ser radical, mas também necessária.
Se surtiria o efeito desejado ele não saberia dizer, porque não estaria mais ali para ver.
Olhou novamente para cima ao sentir um leve roçar de algo cortante sobre seu dorso. Girou furioso sobre si mesmo; seus pensamentos o haviam distraído e o palhaço se aproximara, exibindo-se para a multidão ali presente.
Não, não cometeria o erro da distração, não se deixaria abater tão fácil. Ele tinha uma missão agora, que não somente a de procriar; sua missão era mudar o conceito dessas pessoas que tinham ido ali para se divertir; todas, sem exceção, queriam ver a morte.
E morte é o que veriam.
Afastou-se do palhaço reluzente; respirou fundo e concentrou-se.
Os minutos passavam e o vozerio do povo que lotava a arena aumentava cada vez mais, gritando por morte.
Respirou novamente e sentiu dentro de si uma força irresistível; conhecia aquela força e deixou-se possuir, enquanto relembrava os melhores momentos de sua vida.
⟿⥈⟿

Novamente aquela sensação boa de estar em meio ao mar; o balanço das ondas que lhe dava conforto e fazia-o sentir-se protegido; sentiu-se forte e feliz ao mergulhar quando notou que era chegada a hora, a hora tão esperada por ele e por sua mãe.
⟿⥈⟿

Sentiu seus chifres rasgarem a carne que o libertaria, ossos se quebrando e dando-lhe o apoio incondicional para a sua libertação; viu de relance olhos arregalados de pavor, gritos de dor, mãos se juntando em um pedido tardio de clemência a Deus − para eles e não por ele.
Archibaldo mergulhou destemidamente em direção ao mar de pessoas que antes gritavam por sua morte. Em seus chifres carregava o palhaço luminoso inerte; sob suas patas sentiu ossos se quebrando, e sangue, muito sangue. Para aqueles que gritavam pela morte, Archibaldo lhes deu a morte.
Archibaldo conseguiu silenciar os gritos de morte, pois agora eles gritavam por si mesmos; abaixo de sua meia tonelada de força bruta, corpos inanimados se juntavam uns aos outros com sua passagem.
⟿⥈⟿

A sua passagem para a vida, pois naquele momento ele era expelido por sua mãe e com um baque caiu ao chão. Olhando-a, sorriu: era seu primeiro dia de vida, uma vida que hoje gostaria de nunca ter vivido, uma decisão que gostaria de nunca ter tomado.
⟿⥈⟿

A notícia se espalhou pelos principais e maiores jornais do mundo. No “El País”, da Espanha, estamparam em primeira página uma foto que mais se assemelhava ao Mar Vermelho, com o título “Tragédia em Festival de San Isidro.”
Em Le Monde, da França: “A vingança”
No The Washington Post, dos Estados Unidos: “Touradas, uma Tradição ou Morte?”
No Clarin, da Argentina: “Tragédia ou Deus quer nos dar um Aviso?”
Em The Guardian, da Inglaterra: “Algo muito Triste e Grande para se Pensar”
Em uma mensagem postada por Liana Zecca em seu Facebook: “Fim às Touradas”.

Nota da autora:
História
A tourada vem de tempos muito antigos. Na península ibérica, havia locais sagrados onde os celtiberos (ou seja, povos de origem celta que se estabeleceram na península) sacrificavam touros (ou seja, matavam touros por motivos religiosos). Há representações antigas da matança de touros na arte de várias culturas, inclusive a árabe, a romana e a grega, como relevos, afrescos, vasos e esculturas.
Muitas outras maldades podem ser feitas contra o touro de tourada. Diz-se que, em alguns casos, pomadas irritantes são passadas em seus olhos, para provocar irritação e diminuir a concentração e a visão do animal; outras vezes, dão choques elétricos em áreas muito sensíveis do animal, para que ele fique ainda mais nervoso. É claro que, durante a "lide", ele é provocado, enfurecido, cansado, ferido e sangrado, reagindo para se defender até a morte.
Infelizmente ainda existem touradas em diversos países como Portugal, Espanha, França, México, Colômbia, Peru, Venezuela e Guatemala.
Eu sugiro aos meus leitores que se coloquem dentro do meu personagem Archibaldo. Então, lhes pergunto: Que decisão tomariam?
A morte pela morte, com certeza, sabemos não é a melhor delas.


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